Quando a periferia dá aula para a universidade

Quando a periferia dá aula para a universidade

Projetos em favelas descontroem o mito de que só as universidades produzem saber relevante e posicionam cada vez mais a educação
como um ecossistema.


A educação é direito básico de qualquer cidadão. Para moradores de favelas, no entanto, esse acesso é um desafio que, quando encarado como estímulo, e não barreira, beneficia toda a sociedade. Quando os estudantes são estimulados a todo momento pelos professores e pelos ambientes de aprendizagem, o que se observa é a emergência de iniciativas pouco conhecidas pela grande maioria. Nelas, a colaboração é a chave para atitudes positivas em relação à experiência de aprendizagem e construção do conhecimento, fazendo a diferença para milhares de pessoas.

É o caso do projeto de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) “Educação, Saúde e Cultura em Território de Periferia Urbana”. Como o nome sugere, tem como objetivo fazer com que diferentes instituições atuem de forma intersetorial e dialoguem entre si, aproximando-se cada vez mais das favelas, num entendimento de que educação é ecossistema. E mais: de que inovação pedagógica pode nascer da colaboração e interação entre vários atores, enriquecendo o processo de aprendizagem.

Cursando o último período de Serviço Social na UFRJ, Henrique Dantas participa da proposta, que acontece nas favelas da Maré e Manguinhos, ambas no Rio de Janeiro. Segundo o estudante, iniciativas como esta ajudam a modificar o conceito de ensino superior nas favelas, tornando a universidade um ambiente menos distante dos moradores e reforçando a premissa de que os espaços de aprendizagem não são exclusivos de quem ostenta um brasão centenário, e sim construídos a partir de autonomia, conexão e colaboração.

“Nosso trabalho valoriza ações junto a jovens de escolas do Ensino Médio. Durante essa aproximação, levamos as pessoas a conhecer alguns cursos da universidade, falamos um pouco mais sobre a instituição e promovemos atividades como saraus, rodas de conversa e oficinas de cartazes, mostrando que aqueles locais também produzem conteúdo e que a universidade é um lugar possível para todos”.

O próprio estudante é exemplo disso. Morador da comunidade da Serrinha, em Madureira, também no Rio de Janeiro, Dantas conseguiu ingressar em uma das instituições mais conceituadas do país, mas sabe que esta não é uma realidade para todos. O universitário relata que é comum jovens de favelas enxergarem a universidade como um lugar de superioridade, acessado apenas por “pessoas brancas e de olhos azuis”.

“Quando esses indivíduos me veem ali no projeto, um morador de favela que trabalha em área menos favorecida e ainda estuda, eles percebem a situação de outra forma. Por meio de projetos assim, é possível perceber diferenças no território e até mesmo em mim. Muita coisa se transforma durante o processo de trabalho. Ajudamos a construir um diálogo politizado, em que as instituições trabalham em conjunto em prol da educação, saúde e cultura naquele território, mas também atuamos no poder de fala das pessoas que ali vivem, mostrando o quanto elas podem mudar a perspectiva sobre universidade”.

 

Mais do que objeto de estudo, produtores do saber

Há mais de dez anos, uma pesquisa desenvolvida pela então doutoranda da UFRJ Numa Ciro trouxe à tona a percepção de um novo meio de produção de conhecimento. “O saber vinha das favelas e dava aos sujeitos condições de elaborar sua arte sem nunca ter adentrado uma instituição de ensino. Isso fez a pesquisadora se questionar sobre como poderia conhecer e permitir que esses sujeitos mostrassem para as universidades os conhecimentos e saberes oriundos de suas quebradas. Daí surgiu o nome do nosso curso, com o objetivo de possibilitar a troca”. Explica Rosângela Gomes, coordenadora pedagógica do curso de extensão Universidade das Quebradas (UQ), promovido pela UFRJ.

Inicialmente focado em artistas, ativistas culturais ou pessoas sem escolaridade com atuação em movimentos sociais na periferia do Rio de Janeiro, o projeto logo viu uma mudança no perfil dos seus participantes. Segundo Rosângela, a cada edição, os interessados se mostravam mais fortalecidos na área educacional, apresentando um currículo com formação acadêmica que incluía graduação e até mesmo pós-graduação, reforçando uma premissa cada vez mais defendida pelos pesquisadores em inovação pedagógica: todos ajudam a transformar, buscar soluções, novos significados e caminhos para aprendizagem.

“Isso mostra a importância de levar a esses segmentos a troca de saberes e como a UQ tem sido uma experiência positiva nesse sentido. Apesar de algumas falhas, como a falta de patrocínio que possa custear a vinda de palestrantes, oficineiros ou ajuda de custo para auxílio-transporte e alimentação, conquistamos, ao longo destes dez anos, algumas parcerias importantes e que contribuíram para o desenvolvimento e a realização da iniciativa até hoje”, comemora Rosângela, acrescentando que mais de 800 pessoas já participaram do curso.

Intercâmbio como espaço de democratização

Esse tipo de interação entre saber popular e acadêmico não é novidade para Sofia Barreto, cujo objeto de mestrado gira em torno dos territórios de periferia. A jovem estudante acredita que pensar na relação entre favela e universidade é reconhecer a existência de um esforço por parte de vários grupos e movimentos sociais. Para ela, as instituições de ensino vêm tentando ser lugares mais democráticos e de saber crítico, na medida em que promovem o intercâmbio com o conhecimento que nasce no território das favelas, um reforço no conceito de colaboração aplicado à educação enquanto elemento de potencialização do processo de inovação a partir da diversidade de referências, saberes, questionamentos e alternativas.

“Hoje em dia, percebemos que há uma preocupação maior e que essa troca é mais intensa a partir do momento em que os moradores de favela conseguem estar nas universidades produzindo saber científico e acadêmico, sem ignorar o saber do dia a dia. Existe nas favelas um tipo de saber que denominamos “gambiarras”, que são as soluções produzidas diariamente por essas pessoas, apesar da pobreza. Um exemplo é a senhora mais antiga do território e que possui um trabalho com ervas, ou o barbeiro que ocupa seu espaço em um beco. São pessoas que fazem da cultura uma espécie de sobrevivência, sendo produções muito ricas, assim como o funk ou rap vindo das favelas”.

Durante a graduação, Sofia conta que vivenciou esse intercâmbio ao realizar pesquisas com rádios comunitárias.

“Chegávamos nos territórios para fazer entrevistas e víamos como era potente essa prática e a importância das rádios para a democratização da comunicação na favela, como meios de informação para os moradores. A academia promovia essa troca como forma de estudar a influência e a importância do saber produzido na favela como forma de também gerar conhecimento”.

 

Saber popular x saber ‘legítimo’

Ampliar o acesso de moradores de favelas a uma nova realidade tem sido a missão de organizações como o Observatório de Favelas. Criado há 18 anos, o projeto defende a troca de saberes entre favelas e universidades a partir da concepção de que as periferias são a representação máxima de desigualdade. Frente a isso, as instituições de ensino devem assumir papel estratégico — responsabilidade compartilhada entre professores, estudantes, espaços de aprendizagem, gestores, facilitadores..., estimulando a construção de um saber significativo. Isabela Souza, diretora do Observatório de Favelas, avalia a questão:

“A disputa por um mundo mais igual e democrático passa também pela universidade, mas não adianta isso estar descolado de outras referências. Quando observamos as questões para as quais as instituições se propõem a olhar a partir da perspectiva dos territórios populares, fazemos o exercício da descentralização dos debates, das formas de produzir conhecimento, reconhecendo que há outros sujeitos atuando nesse cenário”.


Para a especialista, esse intercâmbio vai além de facilitar o ingresso de moradores de favelas nas universidades, como alguns pré-vestibulares comunitários têm feito de maneira eficaz. Segundo Isabela, mais do que pensar na ampliação do número de moradores de favelas nessas instituições, é preciso colocar em debate a estrutura da própria universidade para que ela possa de fato enfrentar o desafio de unir educadores e estudantes na busca pelo conhecimento, com olhar crítico sobre os problemas da sociedade.

“Diz respeito não somente à entrada, mas também à permanência desses jovens periféricos nas universidades. Além de incentivos para que eles terminem os estudos, é fundamental estimulá-los a produzir pesquisas e a ingressar em projetos de engajamentos que pautem seus próprios territórios, valorizem suas riquezas e abordem seus próprios temas”.


O desafio para alcançar esse patamar é, de acordo com Isabela, a hierarquização dos saberes: “O que acontece historicamente é que tudo que é popular e periférico é inserido em categorias ‘menos legítimas’. Nesse sentido, a academia teria o poder de produzir o conhecimento científico, quando, na verdade, o saber produzido fora desse ambiente também é legítimo, e essas pessoas que o produzem podem ser consideradas detentoras do saber”.

A estudante Sofia Barreto reforça o ponto de vista de Isabela. Para ela, a maioria dos territórios são abertos à aproximação das instituições, desde que isso seja feito com cuidado. “Quando a universidade chega achando que é detentora do saber e que está ali para levar algo para a favela, não é o ideal. É preciso estar ali para pensar e construir junto com a população, atuando para que cada vez mais favela e universidade compartilhem seus saberes a partir da troca de experiências e da produção de saber conjunto”, diz.

Quando questionada sobre como essa situação poderia mudar, Isabela é enfática: “Não se trata de um favor para a favela, mas sim reconhecer que ali é um território de saber legítimo, com a seguinte diferença: enquanto a universidade está preocupada em sistematizar esses saberes dentro de modelos específicos, a favela está sistematizando esses conhecimentos da forma que lhes é mais útil”. Uma aula vinda da periferia, que mostra que o aprendizado desenvolvido a partir de problemas reais traz inovação e potência para os saberes produzidos pela diversidade de mentes e experiências.

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